Nas sombras das árvores

Foto: J.E.Lèfevre

Quando o professor Léfevre, da Fauusp, pediu-me um comentário do texto que êle havia escrito sobre a vontade do O.N. de querer cortar a ponta da marquise do Ibirapuera para integrar melhor a obra do teatro, (opinião do O.N.) envie-lhe esta reflexão, isso em 2005

Oscar Niemayer é um artista, e como artista pensa como artista.
De 1912 a 1923, onze anos, Marcel Duchamps esteve envolvido com sua magistral obra o “Grande Vidro”, ora em atitudes de abandono, ora a continuação da obra.
Entre viagens e aquelas dúvidas ia fazendo suas anotações de experiências e procedimentos para o “Grande Vidro”.
Octavio Paz considerando Duchamps o artista o mais hermético do século “XX” (grifo meu) com a "Noiva despida por seus celibatários,mesmo" Duchamps nos dá pistas de entendimento com a “Caixa verde” como um desses folhetos de instruções e conseqüentemente para o “Grande Vidro”.
[1]
Oscar Niemayer, não morreu e não sabemos se há ou haverá “caixas”.
E será que para compreendermos a implantação do Parque Ibirapuera e sua geometria há necessidade de alguma “caixa”? Não.

Considerações do que penso, sobre à sombra da marquise e poder ouvir músicas:

Falar de uma técnica pura e simples não tem nada a ver com a arte, segundo o que Adorno nos propõe como reflexão em Música y Técnica, hoy.
[2]
Não há um tempo finito para a conclusão do objeto artístico, há imposições mercadológicas que se imiscuem com o ato de criação. São os históricos mecenas, o estado, os banqueiros, os comerciantes, os eclesiásticos, e quantos o quiserem ser, esses ditam o tempo para os artistas.
Na unidade de uma época, há uma dialética do movimento de tecnificação da obra de arte.
Há uma lei de integração e outra de alienação.
A de integração submete a forma estética a constante incorporação de setores que estavam ao largo para compor uma unidade. Refere-se Adorno a atualizações e correções de rota.
E a alienação, que se por casualidade o resultado da obra fracassar ao empregar somente a especialização, e ainda, se não tiver subjetividade e separadas do conteúdo, a obra não terá valor estético. Refere-se a uma obra executada por um virtuose, mas sem expressão e sentimento (subjetividade).
Stravinsky sobre Beethoven dizia, ser irrelevante a questão de se a Terceira Sinfonia foi criada sob a inspiração do Imperador Napoleão. Só a música é que importa. Mais adiante observava, nas composições para piano o que importava era o piano, em sinfonias, aberturas, peças de música de câmara, o ponto de partida era o elenco instrumental.
[3]
Indo em frente. Perseguir uma inexistente subjetividade da construção coisificada e buscar a subjetividade por analogias abstratas, não constitui uma passagem para a objetividade.
Isto é, argumentar na subjetividade quando não há subjetividade, não leva à objetividade.
O desejo de mudar conceitos, depois da firmeza defendida, não invalida a reformulação e atualização. Mas há que se ater em aspectos também atualizados.
Numa carta a Victor Nekrasov Le Corbusier escreveu: “Vocês têm em Moscou, nas igrejas do Kremlin, vários afrescos bizantinos magníficos. Em determinados casos, essas pinturas não solapam a arquitetura. Mas tampouco estou certo de que lhe acrescentam algo; é esse o problema todo do afresco. Aceito o afresco não como algo que dá ênfase à parede, mas ao contrário, como um meio de destruí-la violentamente, para remover qualquer noção de sua estabilidade, peso etc. Aceito o Juízo Final de Miquelangelo na Capela Sistina, o qual distorce completamente a própria noção de teto. O dilema é simples: se o teto e as paredes da Capela Sistina fossem para ser preservados como forma, não deveriam ter sido pintados com afrescos, significando isso que alguém quis remover para sempre seu caráter arquitetônico original e criar alguma outra coisa, o que é aceitável”
[4].(Le Corbusier, apud Serra, 1989)
Entendo que se houve uma intenção clara e deliberada para a composição de um elemento na arquitetura, este elemento é uma característica fundante da sua linguagem estética incorporada no tempo, portanto é um elemento marcante.
Entretanto a possibilidade de desintegração de uma obra ainda não integralizada não é uma possibilidade condenável, ainda pensando como Adorno, há regras manejáveis, adequadas à situação.
Adorno refere-se aos compositores, mas as regras são possíveis também fora de seu trabalho.
A primeira delas é, “resulta absolutamente necessário no sentido técnico-artístico, proteger a consciência da relação dos gastos e o resultado”.
Aspecto importantíssimo lá no parque.
... Há uma grande diferença entre uma pintura que só se dirige a retina e uma pintura que vai mais além da impressão retiniana é o queria Duchamps com seus trabalhos, não só agradar os olhos. Se a mutilação de um “naco” da marquise para acrescentar um novo componente é para uma satisfação retiniana, há muito o que analisar sobre essa vontade nessa magnífica obra inacabada, ainda.
Estamos falando sobre a busca do belo, e sobre o belo, Plotino, em nosso caso, está na justa metida.
O que é que ele nos diz: O belo dirige-se principalmente à visão; mas também há uma beleza para a audição, como em certas combinações de palavras e na música de toda espécie, pois a melodia e os ritmos são belos. As mentes que se elevam para além do reino dos sentidos encontram uma beleza na conduta de vida: em atos, caráteres, bem como a encontram nas ciências e nas virtudes
[5].
Estamos falando de uma das mais expressivas obras de um dos maiores arquitetos da humanidade.
O assunto deve entrar em outra esfera que não só a euclidiana, mas também numa esfera metafísica.

Em 1979 a General Services Administration encomendou e comprou uma escultura urbana de grandes dimensões de Richard Serra, para ser instalada na cidade de Nova York, Estados Unidos.
Essa escultura permanente para um local específico demandou exaustivas reuniões entre o artista, advogados de ambas as partes, estudos de impacto ambiental, órgãos governamentais, até chegarem a um consenso entre todos os envolvidos onde seria instalada, Federal Plazza, 26, em Manhattan,.
Após os acertos jurídicos foi pago ao artista o valor da escultura e a GSA tomou posse da “Tilted Arc”.
Decorridos algum tempo a GSA sobre pressão do poder hegemônico resolveu mudar a escultura de local.
Com essa insólita decisão, ocorreu uma diligente intervenção de Richard Serra, insatisfeito com a proposta de mudança, pois sua concepção era concernente àquela determinada praça.
O artista acorreu à GSA, alegando que o contrato dizia, uma obra especifica para um local específico.
O fato culminou com a entrada do New York Times criticando a instalação da escultura, foram mais de 350 artigos entre favoráveis e desfavoráveis à obra. Houve reuniões entre os funcionários das organizações vizinhas à praça questionando a retirada, ações judiciais, pareceres da crítica artística, enfim uma mobilização muito grande, uns a favor da retirada, outros favoráveis à permanência da “Tilted Arc”.
Richard recorreu a Convenção dos Direitos Autorais de Berna(1886) no anseio de sua escultura permanecer no local acertado, a National Endowment for the Arts analisou outros locais para a transferência da escultura.
O artista alegava que a escultura era para a Federal Plazza e lá ela estava e deveria ficar.
Precisamente em 13 de março de 1988 a “Tilted Ar” com 36,50 m de comprimento por 3,70 m de altura em aço foi retirada da praça. Como? A obra foi picada e transformada em aço de sucata. Lixo.
Qual foi a alegação do Procurador da Republica, Rudolph Giuliani?
- ”para começo de conversa, Serra vendeu seu discurso ao governo(...) como tal, seu discurso tornou-se propriedade do governo em 1981, quando recebeu o pagamento integral por sua obra...
[6]
O que pensar?
Apesar do autor recorrer a instâncias pertinentes, a obra não mais lhe pertencia, não houve maneira legal de manter sua preservação.
Nosso parque está sob o controle de órgãos específicos que regulamenta a preservação de patrimônios, e cabe a nós, cidadãos, exercer nossa cidadania na defesa de um bem que é nosso e está preservado.
O autor no caso não é relevante, mas a obra.
Estamos sob um regime de ordem estabelecida, com regras e preceitos nem sempre adequados às situações.
Se os preceitos e regras forem seguidos dentro de uma regulada regulação pertinente às diversas atividades sociais, o exercício de uma cidadania atuante será possível.

Voltando ao Plotino, quando algo é conduzido à unidade, a beleza entroniza-se ali, pois ela difunde por cada uma de suas partes individualmente e pelo conjunto.
Cortar um “naco” da marquise e entronizar-se ali outro “naco” pode até a unidade manter a beleza.
É provável, pois há a beleza que é conferida pelo artífice a uma casa inteira e a todos as suas partes, e há a beleza que alguma qualidade natural pode conferir a uma simples pedra, manterá a beleza original do conjunto.
Gostaria de pensar em outras belezas como Plotino, outras mais elevadas, que não são vistas pelos sentidos, mas pela alma.
São as belezas das belas condutas, pelos belos caráteres, pelos modos virtuosos que devemos primeiro pensar.
Quais belezas devemos ter simpatia e respeito e exigir em nossas relações, quais belezas os mestres devem dar o exemplo?

Os aspectos que alteram a compreensão ou o valor que o artista impõe em sua obra tem o seu limite de tolerabilidade constrita e os aspectos são vários, vão até mesmo na esfera jurídica.
Em nosso famigerado parque, comprometido com um lago próximo do insalubre, uma manutenção precária e que não pertence mais às vontades particulares, todo esforço que nele se puser deve ser para beneficiar a melhoria de sua qualidade e conservação para a coletividade.
O abrigo de atividades não culturais dentro dos prédios que compõe o parque deve ser eliminada com presteza.
Sua salubridade deve ser a tônica das preocupações, quiçá mais sombras de árvores do que sombras construídas.
Devemos de ter a consciência da preservação do que existe, saber que uma obra arquitetônica estando por traz de árvores não está menosprezada, mas perfeitamente integrada e conservada para o uso público.
[1] Paz, Octavio, Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza:São Paulo,Perspectiva,1977
[2] Adorno, Theodor W. El arte em la sociedade industrial.Bueno Aires:Rodolfo Alonso Editor,1973
[3] Fischer,Ernest.A necessidade da arte:São Paulo,Zahar,1976
[4] Serra, Richard. “Tilted Arc”Destruído.Novos Estudos Cebrap.São Paulo,n.26,Março 1990 p.152
[5] Tratados das Enéadas/Plotino.Trad. Américo Sommerman.São Paulo: Polar Editorial, 2000
[6] “Tilted Arc”Destruído.São Paulo, Novos Estudos Cebrap,n.26, Março, 1990, PP 141,157.

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